“Se estamos perplexos por causa de qualquer aparente
contradição nas Escrituras, não nos é permitido dizer que o autor desse livro
tenha errado; mas, ou o manuscrito utilizado tinha falhas, ou a tradução está
errada, ou não entendemos o que está escrito”
Santo Agostinho
Um certo dia, quando ainda era um adolescente, estava
casualmente conversando com um irmão e fiz o seguinte comentário: “Saul não
obedeceu ao Senhor deixando de eliminar a todos os amalequitas , conforme por
Ele ordenado (1Sm. 15:1-3) e, como consequência, não só foi rejeitado por Deus
como também foi assassinado por um amalequita no campo de batalha (2Sm.
1:1-10)”. O irmão, logo em seguida, disse: “deixe-me te mostrar uma contradição
na Bíblia. O relato em 1Samuel diz que o rei Saul cometeu suicídio, lançando-se
sobre sua própria espada (1Sm. 31:4-6), enquanto 2Samuel capítulo 1 registra
que ele foi morto por um amalequita, o qual, inclusive, foi executado por Davi
com base em sua própria confissão de assassinato. Qual dos relatos é correto?”
Não tive resposta, naquele momento, e o irmão, por sua vez, sorriu e encerrou a
conversa. Estaria a Bíblia cheia de contradições, erros e equívocos históricos,
narrativos ou doutrinários? Tive que conviver com esses questionamentos por
muito tempo até que conheci a apologética cristã. De forma bem simples,
apologética significa defesa e, no caso em questão, defesa da fé cristã (1Pe
3:15)1. A apologética é muito ampla em sua abordagem tratando de assuntos como
a existência de Deus, a confiabilidade das Escrituras, a veracidade histórica
da ressurreição de Cristo, ética cristã (como lidar com questões éticas como o
aborto, homossexualismo, feminismo, ideologia de gênero, ambientalismo,
pobreza, dentre outros), as seitas e heresias (campo denominado heresiologia),
entre muitos outros assuntos. Vivemos tempos difíceis, dominados pelo
relativismo moral, pluralismo e sincretismo religiosos, liberalismo e
misticismo teológicos e engano espiritual de todo gênero e espécie. Deus e Sua
Palavra nunca foram tão questionados, menosprezados e desafiados por homens com
corações insensatos e endurecidos pelo engano.
Mas Deus, ao longo dos séculos, tem levantado homens
revestidos e investidos com sabedoria do Alto, hábeis em apresentar a fé cristã
não apenas de forma racional e precisa, mas como sendo fiel e digna de inteira
aceitação Sem dúvida um dos nomes mais notáveis da apologética cristã da
atualidade foi Norman Geisler2, com centenas de publicações, livros e palestras
sobre apologética cristã. Assim como pode ser dito a respeito de Ravi
Zacharias3, sua contribuição nessa área para o cristianismo é incalculável e
somente a eternidade poderá recompensá-lo. Honremos a homens como estes (Fp.
2:29), dos quais o mundo não era digno (Hb. 11:38). Foi justamente por
intermédio do ministério apologético de N. Geisler que a quase totalidade de
minhas dificuldades bíblicas foram superadas e minha fé fortalecida na
infalibilidade da Palavra de Deus, pois um dos temas mais trabalhados pela
apologética é o das contradições bíblicas (quando aborda a historicidade,
confiabilidade, inspiração e inerrância das Escrituras). E é meu propósito
nesse texto apresentar algumas considerações feitas por Norman Geisler, em sua
Bíblia de Estudos (perguntas e respostas) , quando lidamos com dificuldades
bíblicas. Primeiro e antes de tudo, é preciso trabalhar com o seguinte
pressuposto: não há erros na Bíblia. O silogismo lógico é simples: (1) Deus não
pode errar (Hb. 6:18; Tt. 1:2; 2Tm. 2:13; Jo 14:6; 17:17 Sl. 119:160); (2) a
Bíblia é a Palavra de Deus (Jo 10:35; Mt. 4:4; 5:18; 2Tm. 3:16; 2Pe 1:21; Mc.
7:13; Rm. 9:6; Hb. 4:12); (3) portanto, a Bíblia está isenta de erros. A
inspiração divina é prova inquestionável de sua inerrância. Inobstante não haja
erros na Bíblia, há, sem dúvida, dificuldades (como a que apresentei no início
do texto), que são aparentes contradições, ou seja, não são contradições reais
ou verdadeiras. E como lidamos com esse tipo de dificuldade bíblica? Ignorar
não é opção. Na verdade, antes mesmo de tentar solucionar dificuldades
bíblicas, precisamos remover os véus que estão sobre o nosso entendimento,
obscurecido pelo pecado, lidando especificamente com os seguintes equívocos/erros
que invariavelmente
cometemos quando nos aproximamos da Bíblia, conforme
apresentado por N. Geisler (vou apenas citá-los, sem tecer comentários)4: 1.
Presumir que o que não foi explicado seja inexplicável. 2. Presumir que a
Bíblia é culpada (contém erros), até que se prove em contrário; 3. Confundir as
nossas falíveis interpretações com a infalível revelação de Deus; 4. Falhar na
compreensão do contexto da passagem; 5. Deixar de interpretar passagens
difíceis à luz das que são claras; 6. Basear um ensino/doutrina numa passagem
obscura; 7. Esquecer-se de que a Bíblia é um livro humano, com características
humanas (possui fontes humanas, estilos literários humanos, perspectivas
humanas, padrões humanos de pensamentos, emoções humanas, interesses humanos
específicos); 8. Presumir que um relato parcial seja um relato falso; 9. Exigir
que as citações do Antigo Testamento feitas no Novo Testamento sejam sempre
exatas (um mesmo significado pode ser transmitido sem o uso das mesmas
expressões verbais ); 10. Presumir que diferentes narrações sejam falsas (testemunhos
que diferem em pontos periféricos se complementam e confirmam a verdade central
da narrativa, como nos Evangelhos); 11. Presumir que a Bíblia aprova tudo que
ela registra (a verdade na Bíblia encontra-se em tudo o que ela revela , não em
tudo o que ela registra , v.g. , a idolatria da nação de Israel); 12.
Esquecer-se que a Bíblia faz uso de uma linguagem comum, não técnica ou
científica; 13. Considerar que números arredondados sejam errados (consequência
do uso do linguajar comum); 14. Não observar que a Bíblia faz uso de diferentes
recursos literários (narrativas, poesias, profecia, parábola, alegorias,
metáforas, dentre outros); 15. Esquecer de que somente o texto original é
isento de erros e não as cópias (apesar de que os erros dos escribas nos manuscritos
bíblicos não afetam a mensagem básica e central da Bíblia); 16. Confundir
afirmações gerais com universais (princípios bíblicos gerais admitem exceções);
e 17. Esquecer-se de que uma revelação posterior sobrepõe-se a uma anterior
(revelação progressiva).
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1 “Antes, santificai ao Senhor Deus em
vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor
a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3:15,
ACF). Gostaria de recomendar alguns livros de apologética que já tive a
oportunidade de ler: (1) Cristianismo puro e simples , de C.S. Lewis
[simplesmente um clássico da apologética cristã]; (2) Em Guarda: defenda a fé cristã
com razão e precisão, de William Lane Craig [um dos maiores apologistas vivos
da atualidade]; (3) A fé na era do ceticismo: como a razão explica Deus , de
Tim Keller [pastor presbiteriano norte-americano e um dos mais profundos e
profícuos expositores das Escrituras, que conheço]; (4) Apologética pura e
simples , de Alister McGrat.
2 Norman Geisler dormiu no Senhor em
01º de julho de 2019. Para mais informações, vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Norman_Geisler.
Recomendo muito a leitura do livro Não tenho fé suficiente para ser ateu , do
N. Geisler em coautoria com Frank Turek. Livro de leitura muito objetiva, clara
e convincente. Caso você deseje optar por um único livro de apologética (por
questão de interesse pessoal, tempo ou orientação do Senhor), eu indicaria esse.
3 Ravi Zacharias dormiu no Senhor em
19 de maio de 2020. Para mais informações, vide:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ravi_Zacharias.
4 Para um aprofundamento de cada
tópico, recomendo a já mencionada Bíblia de Estudos (Pergunta e Respostas) e/ou
o Manual Popular – Dúvidas, Enigmas e Contradições da Bíblia , ambos de N.
Geisler.
Acredito que essas orientações sejam
úteis no sentido de nos equipar melhor para compreender e lidar com algumas
dificuldades bíblicas. Obviamente, nem tudo será respondido (e aí voltamos à
máxima do it e m 01 ), mas muito poderá ser satisfatoriamente esclarecido ou
explicado. Alguém já disse: “lendo a Bíblia eu encontrei muitos erros, todos
eles em mim.” O homem se esforça em encontrar erros na Bíblia porque, como já
disse Charles Spurgeon, “a Bíblia contém o que os homens odeiam: a verdade”. E
a verdade é a luz que expõe as trevas, erros e enganos de um coração rebelde e
idólatra. Portanto, encerro com um convite: que sejamos como o profeta Jeremias
que declarou “achadas as Tuas palavras, logo as comi; as Tuas palavras me foram
gozo e alegria para o coração...” (Jr. 15:16), clamando sempre ao Pai por espírito
de sabedoria e revelação (Ef. 1:17), quando nos aproximamos da Palavra de
Cristo, que deve habitar ricamente em nós (Cl. 3:16). Ah, e quanto à morte de
Saul, fica como dever de casa.
Em Cristo,
Ercolis Santos Aracaju,
junho de 2020.